radicalmentelivre

sábado, 25 de abril de 2009

O 25 de Abril e a crise

Por Mário Tomé

Há trinta e cinco anos derrubou-se o muro que nos impedia de sair de uma guerra ignóbil e nos prendia na nossa própria pátria.

Durante dezanove meses, neutralizada a repressão pelo poder material e pela força moral do MFA pressionado por um vigoroso movimento de soldados, a revolução social foi impondo políticas com uma orientação geral favorável às classes trabalhadoras.

Para tal, retiraram poder aos senhores da terra, aos chamados capitães (que nome para tal coisa!) da indústria e da finança, enriquecidos à sombra da política do fascismo, protegidos pelos crimes da PIDE, da legião e das outras forças de repressão.

O alcance de algumas das conquistas, assim devem ser chamadas pela resistência raivosa que os antigos senhores lhes opuseram, indo até ao terrorismo bombista, foi de tal monta que durante esses meses a vida dos nossos concidadãos tinha sofrido uma mudança total.

A alegria de viver, a ocupação do espaço público pela cidadania activa, o acesso de milhões a bens materiais e culturais com que nunca tinham sonhado, transbordou das fronteiras e mobilizou milhares de homens e mulheres por essa Europa fora. Portugal foi o ponto de encontro e de permuta de novos ideais, lutas, aprendizagens e saberes. Portugal era o centro do mundo para todos aqueles e aquelas que ansiavam por mudança transformadora, por paz, liberdade e justiça social, socialismo, que tinham sonhado durante o Maio de 68 e de que viam agora, neste pequeno rectângulo, não só um sinal anunciador mas, mais que isso, como realidade em movimento.

O Portugal das navegações impossíveis renascia depois de séculos de vil apagamento, de 50 anos de ditadura fascista e de 13 anos de guerra desgastante, inglória, criminosa e sem saída. E renascia virado ao futuro, de novo audaz e poderoso, menos pela fraca força material que pela explosão de vontade libertária do seu povo.

«E a orla branca foi de ilha em continente/ clareou correndo até ao fim do mundo/ e viu-se a terra inteira de repente/ surgir redonda do azul profundo.»* A «Mensagem» agora era outra, não a de um império que só podia ser caquético, mas como anúncio e afirmação da liberdade como essência da vida dos povos. Da Europa à Ásia, de Portugal a Timor, do continente às ilhas, saltando para o Brasil e o Chile, a Argentina e o Uruguai, Salvador e Nicarágua, de novo o Novo Mundo. E onde ela estiolava, na sujeição a bárbaros ditadores lacaios do império norte-americano, o eco da revolução portuguesa reacendeu a chama da esperança, proclamou a possibilidade de mudança, convocou pessoas e classes, ajudou a rasgar o cobrejão com que os poderosos queriam tapar a realidade, expondo-a na sua brutal evidência de dominação e exploração. Lutas heróicas reforçaram-se, lutas heróicas despertaram,. A América Latina esboçava já aquilo em que está agora a tornar-se: o alfobre de uma possível alternativa ao sistema do império.

Na vizinha Espanha a ditadura assassina de Franco ponderou intervenção militar, tremeu e veio a esboroar-se numa transição apessoada, pela influência da revolução portuguesa.

A democratização política associada à democratização da propriedade da terra e a uma economia gerida por critérios de justiça social, imposta pela acesa luta pela igualdade, foi o cerne da revolução social portuguesa, a revolução do 25 de Abril. Esse era o caminho reclamado pelo povo em movimento que chamou socialismo, e bem, à garantia da prioridade do serviço público provido pelo Estado, democraticamente estruturado na representação política da vontade dos cidadãos e sujeito ao permanente escrutínio da participação popular.

A nacionalização da banca, da energia, dos transportes, ou seja dos sectores fundamentais que determinam o rumo da economia e o direccionamento do produto do trabalho do país e sua distribuição, levados a cabo com grande entusiasmo e eficiência, tiveram precocemente um efeito de boomerang num país em que as forças que era suposto estarem vocacionadas para apoiar a luta e os anseios populares estavam amarradas por dogmatismos e sectarismos vários, quando não em reaccinária obediência geoestratégica às potências que disputavam a hegemonia mundial como foi o caso do PS e do PCP.

A história é relativamente bem conhecida e, principalmente, bem sofrida.

A revolução «impossível» deu lugar ao mercado como medida de todas as coisas incluindo a democracia. A plutocracia instalou-se bem maquilhada e apoderou-se do país, do seu corpo e do seu espírito. A alegria e a ousadia do PREC transformaram-se no «medo de existir» de «Portugal hoje»**. O serviço público foi sendo degradado pelos sucessivos governos e substituído pela iniciativa privada devoradora e predadora. O ensino e a cultura democratizados foram sendo inquinados por uma iliteracia quase incompreensível, consequência da hipoteca da Escola a uma política de reprodução das elites e aos interesses do negócio privado, tanto na sua propriedade como nos seus currículos. O Serviço Nacional de Saúde, a grande marca que restou do 25 de Abril como medida de alcance social universal, foi sendo também ele destroçado, restando as bichas para as consultas, as listas de espera para os actos médicos, a pletora nos corredores dos hospitais públicos e os hospitais privados devorando os doentes que não cabem no serviço que seria o seu, e a encherem os bolsos com as comparticipações do Estado que as elites económica e política querem cada vez mais pequeno e cada vez mais pagante.

Os próprios grandes «capitães da Indústria» - Mellos, Champallimauds, etc. - trocaram o ímpeto produtivo pela lascívia do jogo da bolsa e dos offshores. Banca e Seguros. O país (vemos agora que todo o mundo) pendurado do casino!

E eis-nos chegados, trinta e cinco anos depois, não só à prova dos nove, mas à prova real das operações entretanto realizadas.

A actual crise que se abateu sobre os trabalhadores em todo o mundo, com a devastação que está à vista, veio mostrar como as palavras de ordem do PREC abrilista, como a solidariedade internacionalista que também tomou conta das ruas, as exigências populares que o Estado assumisse o controlo estrito do poder económico, como as medidas avançadas na reforma agrária e nas nacionalizações, na implementação do serviço público como prioritário para assegurar a justiça social e respeitar a igualdade inerente à condição e dignidade humanas, eram não só o caminho certo, marca da modernidade do 25 de Abril, mas também assinalavam com exactidão os inimigos da liberdade e da justiça social: o capitalismo, a finança, o mercado aceite como medida da democracia.

E eis-nos agora numa outra (não será exactamente a mesma?) encruzilhada: vamos aceitar as imposições dos governos e grandes do mundo, para salvar o sistema entregando de novo o ouro aos bandidos e premiando os criminosos e predadores para os quais o sistema é sustentado por todos?

Ou vamos bater-nos para aproveitar esta crise sistémica sem precedentes - de tal envergadura que os arautos e trovadores do sistema passaram a cantar loas, cínicas naturalmente, àquele que até agora era o símbolo do mal, o socialismo, e a fazerem apelo às análises de Karl Marx que sempre desprezaram e classificaram de irrealistas e suporte das mais desvairadas desgraças para a humanidade - para dar respostas transformadoras que mobilizem os milhares de milhões de pessoas que têm sido até agora a carne para canhão das mais valias ilegítimas, e agora reveladas como ilegais e mesmo de apropriação criminosa, num sistema cuja alma é a corrupção mais desbragada, que provoca a miséria mais extrema ao lado da riqueza mais obscena, num total deserespeito pelas pessoas, pela humanidade e pelo próprio planeta?

Vamos continuar a curvar-nos perante a corja já denunciada e combatida entre nós durante o PREC até aos limites das nossas forças e possibilidades?

Ou vamos buscar forças à nossa dignidade de cidadãos e à consciência dos interesses que devemos defender em nosso nome e em nome dos nossos iguais para radicalizarmos a luta pela liberdade, pela justiça social, pelo serviço público, pelo Estado de direito democrático que, também ele, está ferido na sua integridade? Para, em articulação com as organizações políticas e movimentos sociais empenhados no progresso construirmos um futuro de igualdade numa terra preservada em toda a sua diversidade, harmonia e beleza?

A necessidade da mudança radical está a ser escamoteada não só pelos vampiros mas também pelos melharucos.

O 25 de Abril foi uma necessidade histórica assumida e executada num sobressalto de ousadia e desprendimento; hoje precisamos desse espírito para responder ao desafio que a história nos coloca de forma ainda mais imperativa mas também mais difícil.

Para comemorarmos seriamente o 25 de Abril temos de responder a esta questão e agir em conformidade.
* Fernando Pessoa
** José Gil

Artigo de Mário Tomé, Esquerda.Net

Etiquetas:

25 de Abril de 1974

Etiquetas:

sexta-feira, 24 de abril de 2009

25 de Abril Sempre

Etiquetas: